MISÉRIA NO ESTADO - ITAMAR MELO, zero hora, 31/07/2011
No dia 12 de julho, Alessandra Rodrigues completou oito anos em um casebre feito de remendos de madeira apodrecida, comprado pelos pais por R$ 150 em Bagé. Não houve bolo, presente ou Parabéns a Você na rua sem iluminação pública ou calçamento, alagada pelo esgoto que corre a céu aberto. O banho foi de balde, porque não há banheiro, só um buraco no chão para servir de latrina. Para atravessar o mês, Alessandra, a irmã e os pais contavam apenas com os R$ 130 do Bolsa-Família, programa federal que distribui valores variáveis conforme critérios.
– Eu queria bolo ou churrasco, mas minha mãe não fez nada. Ela explicou que não tem dinheiro. Só me deu parabéns – contou a aniversariante.
No Rio Grande do Sul orgulhoso de seus indicadores sociais, a miséria de famílias como a de Bagé tende a ser vista como uma anomalia, um mal restrito a bolsões recalcitrantes no entorno das grandes cidades, mas os números do Censo de 2010 contam uma história diferente. Eles revelam um quadro de miséria endêmica. Vivem hoje com, no máximo, R$ 70 de rendimento per capita mensal – o critério federal para configurar a pobreza extrema – 385 mil gaúchos. Se essas pessoas formassem uma cidade, ela seria a terceira maior do Estado.
Saber quem são e onde estão essas pessoas revestiu-se de importância renovada a partir de 1° de janeiro, quando a recém-empossada presidente Dilma Rousseff prometeu erradicar a pobreza extrema no país. Em junho, o governador Tarso Genro uniu-se à proposta, com o lançamento do programa RS Mais Igual. Para amparar essas ações governamentais, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aplicou filtros aos dados e quantificou os que mais necessitam do socorro público: são 306,6 mil dos 385 mil gaúchos.
Ao longo deste mês, Zero Hora debruçou-se sobre as estatísticas e percorreu as áreas do Rio Grande do Sul assoladas pela miséria para produzir um retrato dos gaúchos que vivem com quase nada. O resultado, que será publicado entre este domingo e terça-feira, permite lançar um alerta: se as políticas públicas limitarem-se a transferir dinheiro, o problema não será resolvido. Como observa Flavio Comim, professor de Economia da Pobreza da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é preciso oferecer um horizonte às famílias.
– É fácil repassar dinheiro, dizer que se erradicou a miséria. Mas o que muda se a pessoa tiver R$ 71 por mês?
A família de Alessandra mostra que a solução é mais complexa. Sua mãe, Josiene Pereira Machado, 23 anos, largou a escola por causa da gravidez, aos 14 anos. Cresceu em meio à violência: um de seus 10 irmãos foi assassinado aos 12 anos. Ao longo do tempo, ela e o marido, José Ricardo Rodrigues, 27 anos, não conseguiram mais do que biscates. A esperança de uma vida digna chegou apenas neste mês – e não veio do governo. José Ricardo conseguiu trabalho em uma estância. Ele receberia o primeiro salário, de R$ 680, neste fim de mês.
– Nossa vida vai mudar – alegrava-se Josiene, que agora vislumbra a possibilidade de oferecer um bolo à filha no próximo 12 de julho.
Os confins agrícolas sucumbem à pobreza
O asfalto fica para trás e surgem quilômetros enlameados por estradas de chão batido. O terreno vai se tornando acidentado, íngreme, pedregoso. Em lugar dos campos cultivados a perder de vista, aparecem pequenas plantações de milho, de feijão ou de mandioca, perdidas no meio de terras deixadas para o avanço do matagal.
É aí, nos confins agrícolas do Rio Grande do Sul, que a miséria encontra o adubo perfeito para vicejar.
Ainda que a imagem de favelas na periferia das grandes cidades seja a que primeiro vem à mente quando se pensa em indigência, é na realidade em zonas rurais longínquas, distantes dos olhos e das preocupações da maior parte dos gaúchos, que ela está mais disseminada. Enquanto no meio urbano a pobreza extrema atinge 2% das pessoas, no campo ela se multiplica para 7%. Em alguns municípios, um terço dos moradores sobrevive com menos de R$ 70 por mês, critério para definir a miséria.
O norte gaúcho concentra a maior parte das cidades onde a penúria floresce. Algumas ficam na outra ponta do Estado, na Serra do Sudeste (região montanhosa que fica no sul do Estado). As duas regiões estão ligadas por características em comum. São áreas de “terra dobrada”, terreno acidentado, montanhoso, impróprio para a lavoura mecanizada. Longe dos centros consumidores e do acesso aos mercados, os que resistem nesses grotões praticam uma agricultura de subsistência. São pessoas que mal sabem o que é dinheiro.
Com 29% dos moradores vivendo sem renda ou com renda de até R$ 70, Lajeado do Bugre, perto de Palmeira das Missões, figura entre os campeões de penúria. Para chegar à sede do município, é preciso enfrentar sete quilômetros de chão batido. As terras planas estão concentradas nas mãos de um punhado de proprietários.
A maioria dos habitantes lavra áreas diminutas em encostas. Dari Brizola, 50 anos, e sua mulher, Salete da Rosa, 24 anos, mal têm onde plantar. No campo, sua propriedade é praticamente um terreno, oferecendo para o cultivo um quadrilátero de 15 metros de lado. Com os filhos, a família soma sete pessoas. Eles vivem de raros biscates e dos R$ 230 mensais pagos pelo Bolsa-Família. A casa de madeira, doada pela prefeitura, não tem energia elétrica.
O lar está privado de geladeira ou de qualquer outro eletrodoméstico. A água jorra na pia por uma mangueira que atravessa um buraco na parede. O registro fica na rua. Sem banheiro, os sete moradores usam um matagal ao lado da casa. Faltam calçado e roupa para os filhos.
– Eles têm de caminhar um quilômetro para pegar o ônibus da escola. Tem dias em que não mando os menores para o colégio, para não passarem frio – conta Salete.
R$ 204 que sustentam 11 pessoas
A face rural da pobreza gaúcha se repete propriedade após propriedade. Em um fundão de Lajeado do Bugre, entre um córrego e um morro, ficam os seis hectares onde 11 pessoas de uma mesma família labutam. O dinheiro que chega lá são os R$ 204 do Bolsa-Família – menos de R$ 20 ao mês por pessoa. A propriedade tem três casas, uma ao lado da outra. Na primeira, moram Tereza de Lourdes dos Santos da Silva, 52 anos, e o marido, Jardelino Rosa da Silva, 49 anos. Na tarde gelada, ela envergonha-se de estar agasalhada com uma jaqueta em farrapos. Durante a vida, mal saiu do seu torrão miserável. Uma vez, doente, foi a Palmeira das Missões, mas quase só viu o hospital.
– Nem Panambi e Ametista do Sul, onde tenho parente, eu conheço. Tenho muita curiosidade de ver outros lugares, mas não tenho dinheiro – conta Tereza.
Nas outras casas moram os dois filhos de Tereza e Jardelino, Eloir e Rudinei. Eles são casados com duas irmãs, Rosangela e Rosemeri Pelinson. O primeiro casal tem três crianças. O outro, duas. Plantam milho, mandioca e pasto. O que produzem é para o consumo próprio ou para alimentar os animais. Uma vez, Rosângela e Eloir tiveram de vender a junta de bois para comprar remédio para Kleberson, o filho de 12 anos, que teve bronquite. Sem os animais, passaram a empurrar o arado com a força dos braços.
– Eram os bois que a gente tinha, mas a criança não podia esperar – explica Rosângela.
A esperança é se aposentar
Em terra de Bolsa-Família, quem tem aposentadoria é rei. Essa é a regra nos grotões rurais empobrecidos do Estado, em que vigora a agricultura de subsistência e onde o dinheiro que circula é o das transferências federais. Pequenos proprietários que passaram a vida cortejando a miséria anseiam pela idade de se aposentar – 60 anos para os homens, 55 para as mulheres – para ver sua renda se multiplicar.
Dono de sete hectares em Vicente Dutra – município que tem 18% da população em situação de extrema pobreza, o sexto pior índice do Estado –, Jaci Correia da Silva, 71 anos, obteve a benesse em dose dupla. Ele e a mulher conseguiram o benefício. Recebem R$ 1.080.
– O que eu tirava durante um ano, no tempo em que trabalhava, agora ganho em um mês. Fiquei rico – festeja Jaci.
A primeira providência dele, ao se aposentar, foi abandonar o cultivo da propriedade, uma encosta com inclinação de 45 graus à beira do Rio Uruguai. Transformou o casebre de uma vida toda em casa, construiu um banheiro, que nunca na vida teve, adquiriu móveis, eletrodomésticos e uma motosserra, passou a ter carne na mesa. Desinteressado da terra, acaba de entregá-la ao filho Vilmar Correia da Silva, 36 anos, que vive com a mulher e os dois filhos pequenos, tendo como única renda fixa os R$ 130 do Bolsa-Família. Jaci ajuda pagando a conta da luz.
– Eu sofri muito aqui. Plantava o paredão de cima a baixo para pagar a terra. Tinha ano em que não tirava nem para o sustento. Agora chegou a vez do meu filho sofrer – diz Jaci.
Encurralados pelo Rio Uruguai, espremidos no meio de morros de acesso complicado e distantes de cidades para onde possam escoar a produção, grande parte dos moradores de Vicente Dutra se vê diante de duas opções: enfrentar a pobreza ou ir embora. De 2000 a 2010, o município perdeu 14% dos habitantes.
A família que dribla a penúria
José Luiz Neto da Silva, sua mulher, Maria Salete, e os cinco filhos têm uma renda mensal de R$ 275. São R$ 39 por pessoa, o que coloca a família com folga na categoria de pobreza extrema definida pelo governo federal. O clã do interior de Lajeado do Bugre realmente enfrenta dificuldades e privações tremendas, mas não se pode dizer que viva na miséria.
A dignidade da família vem de um detalhe esquecido quando se leva em conta apenas a renda para definir quem é indigente: ainda que pouco lidem com dinheiro, os Silva têm 11 hectares de terra de onde arrancam suas pequenas riquezas.
– Plantando feijão e mandioca, ninguém passa fome – afirma o produtor de 46 anos.
Conforme o professor de Economia da Pobreza Flavio Comim, da UFRGS, direcionar o enfoque apenas para a renda provocou um retrocesso na discussão sobre a miséria. Ela observa que criar uma linha única de pobreza extrema apagou as diferenças entre pobreza urbana e rural.
– A pessoa pode estar em um meio rural pobre, mas viver com dignidade, porque se encontra mais próxima da comida – diz.
Esse é o caso da família de Lajeado do Bugre. Mesmo que tenham menos dinheiro do que um pobre urbano, sua qualidade de vida é superior. Em uma tarde de julho, José Luiz percorria com o carro de boi carregado de milho recém-colhido a distância entre a lavoura e a residência. Ele havia plantado do jeito antigo, com arado, e agora debulharia o milho também como nos velhos tempos. Do lado do paiol, montou sua trilhadeira, uma relíquia barulhenta com 40 anos de uso, tornada obsoleta pelo avanço das colheitadeiras. Os filhos começaram a despejar as espigas na máquina, para separar os grãos. Estavam garantindo a alimentação dos sete porcos e das galinhas.
Eles têm ainda três vacas, que permitem vender um pouco de leite e asseguram à família R$ 120 por mês. Os outros R$ 165 vêm do Bolsa-Família. É difícil equilibrar as contas. A rede de água passa na frente da propriedade, mas o casal não fez a ligação para poupar os R$ 35 da tarifa. A opção foi por uma vertente, que não tem pressão suficiente para fazer o chuveiro funcionar. Maria Salete esquenta água no fogão para o banho de bacia. Outra preocupação é com a conta da energia elétrica.
Do dinheiro da família, R$ 106 são direcionados para o financiamento da casa. A anterior estava caindo, e foi preciso levantar uma nova. Ela nunca foi devidamente concluída. Erguida com madeira, não recebeu pintura. Sem paredes internas, tem suas divisões demarcadas por móveis ou lençóis pendurados no teto. Na varanda, estão empilhadas sacas com feijão e milho colhido na propriedade. A horta fornece verduras. O que se compra é farinha, arroz e açúcar. Maria Salete, 47 anos, também aproveita a ordenha para fazer queijo. Além disso, prepara geleia com as frutas do pomar e delicia os filhos com pés de moleque feitos do amendoim que eles mesmos cultivaram. Um terneiro está sendo criado para ser carneado no fim do ano.
Maria Salete também faz os próprios produtos de limpeza. Com álcool, sebo, soda e água fabrica artesanalmente sabão em pó, sabão em barra, desinfetante e amaciante. As crianças não sabem o que é ganhar um brinquedo. Mas inventam os seus. Transformam latas em bateria. Bruno, sete anos, passa os dias manipulando os vidrinhos de remédio com que foi medicado:
– Brinco que eles são os meus boizinhos.
Interesses pessoais e corporativos alterando leis, desrespeito ao teto previsto, disparidades entre o maior e o menor salário, discriminação entre cargos assemelhados e discrepâncias no pagamento de salários, subsídios e vantagens discriminam os servidores públicos, afrontam princípios republicanos, estimulam desarmonia, criam divergências, alimentam conflitos e promovem privilégios a uma oligarquia no serviço público.
Ministro Carlos Ayres Britto, presidente do STF ao cassar uma liminar que impedia a publicação de forma individualizada das remunerações.
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