Em artigo publicado no GLOBO em 18/06/2011 ("A dignidade do servidor"), o ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello faz uma ardorosa defesa da correção inflacionária anual dos salários dos servidores públicos, de resto um direito previsto, com todas as letras, na Constituição brasileira em vigor. Não obstante esse seja um dos artigos de maior clareza da Lei Maior, o reajuste vem sendo sonegado ao servidor sob o pretexto de que precisaria estar previsto em lei específica, como se a Constituição não bastasse.
Relator de recurso em que se solicita a reparação, o ministro Marco Aurélio Mello não titubeou em se manifestar pelo acolhimento, taxando de "omissão perversa" o comportamento do Estado, na medida em que a diminuição progressiva do poder de compra dos salários atenta contra a dignidade do servidor. A matéria só não foi ainda a julgamento porque a ministra Carmem Lúcia pediu vista. Leis são leis e, do ponto de vista legal, não se vê como o plenário do STF, a quem cabe a preservação da ordem jurídica, possa contestar o voto meridiano do ministro relator.
Todavia, do ponto de vista econômico, trata-se de um grave equívoco. A economia não é terreno de "direitos", mas de possibilidades e circunstâncias concretas. No regime de tensão inflacionária permanente em que o país, mesmo depois do Plano Real, continua mergulhado, não haveria pior momento para a reparação, justamente quando se passa por um repique inflacionário que vem alarmando a todos. De nada acrescentaria à "dignidade do servidor" ganhar reposição nominal para perder nos preços aumentados.
Mas, o que fazer? A lesão legal é evidente e é agravada pelo fato do salário mínimo vir sendo reajustado anualmente pela inflação mais crescimento real. Até se pode entender que o crescimento real seja uma prerrogativa exclusiva do salário mínimo, no objetivo político de reparar seu aviltamento histórico e diminuir o alto nível de desigualdade que ainda remanesce no país (o que leva, por exemplo, a que o salário de um ministro do STF seja de 48 vezes o salário mínimo). O que não se aceita é que, quanto à reposição da inflação pura e simples, exista uma regra de compensação para o salário mínimo e outra para os demais salários. O que se precisa ter em mente é que todos os salários se compõem de duas parcelas: a primeira, igual para todos, correspondente ao trabalho-simples (todos os trabalhadores, antes das qualificações que agregam, são igualmente trabalhadores-simples e, portanto, fazem jus a uma mesma recompensa, que é o salário mínimo), e a outra, um adicional diferenciado, na medida do "capital humano" (qualificações) de cada um. Dentro da unicidade devida da regra de recomposição inflacionária, a todos os demais salários caberia a correção linear de suas parcelas de "trabalho-simples", no mesmo montante (nunca no mesmo percentual) concedido ao mínimo.
Mas a verdade, no fundo, é que não se pode ter correção pela taxa de inflação para salário nenhum. Trata-se de uma grande distorção conceitual. A inflação é um fato econômico objetivo e não se pode pleitear uma reparação legal pela sua incidência. Seria como se, diante de um desastre ambiental inédito que reduzisse a safra agrícola a seus 10%, as pessoas recorressem aos tribunais para que tivessem assegurado o seu "direito" de continuar comendo as mesmas quantidades de sempre. No caso da inflação pior ainda, porque sendo o salário mínimo o preço básico da economia, sua correção pela taxa de inflação é a forma mais completa e acabada de indexação, ou seja, de perpetuação do flagelo.
Na teoria econômica mais ortodoxa, o salário (mínimo), como pagamento devido ao trabalho-simples, tem que corresponder à "produtividade-padrão" do trabalho na atualidade da economia. Na distribuição desigual da produtividade do trabalho entre as diversas unidades de produção do sistema econômico, esse parâmetro, como a própria palavra "padrão" indica, diz respeito à produtividade de uma parcela dos trabalhadores maior do que qualquer outra (a "moda" da distribuição, no conceito estatístico), ou seja à produtividade mais encontrada. Essa "moda" pode ser objetivamente calculada, chegando-se à determinação técnica do "salário economicamente devido", no sentido daquele valor que, na repartição funcional do produto entre o capital e o trabalho, a economia pode e deve pagar ao trabalho, não só como um dever de justiça para com o trabalhador, mas no interesse do seu próprio desenvolvimento sustentado e em equilíbrio.
Assim, só incidentalmente, na medida em que a produtividade do trabalho se expressa na relação "Valor da Produção/Número de trabalhadores empregados" encontrada em cada unidade de produção e essa relação nominal varia com os preços, os salários têm que ser corrigidos pela inflação. Só nesse reflexo indireto se justifica conceitualmente a correção dos salários pela inflação, o que é muito diferente da aplicação do índice de inflação a todos os salários, como o STF corre o risco de ordenar.
Para regular de vez a matéria, assegurando a todos o seu legítimo direito e ao mesmo tempo colocando o Brasil no rumo do seu pleno desenvolvimento, "bastaria" que o STF ordenasse ao IBGE uma pesquisa específica para cálculo do valor do "salário economicamente devido" na atualidade da economia brasileira e a mudança da Constituição no sentido da adoção desse novo conceito.
Dada a defasagem histórica acumulada, estima-se que a produtividade-padrão da economia brasileira hoje seja de umas quatro vezes o valor atual do salário mínimo. Assim, passando, por hipótese, o salário mínimo para R$ 2.160 (540 x 4), o salário do ministro do STF seria aumentado no mesmo adicional (2160-540= 1620), passando de R$ 26.000 para R$ 27.620. A relação entre os dois, passaria, assim, das 48 vezes atuais (26.000/540) para 13 vezes (27.620/2.160), diminuindo significativamente a desigualdade, mas mantendo o diferencial de qualificação a que os salários superiores fazem jus pelo capital humano que carregam. Elimina-se, dessa forma, o perigo de que a tendência de longo prazo venha a negar o princípio do mérito, pela igualação geral, como implícito na projeção ao infinito da formula em uso. Como dizia Rui Barbosa, "a verdadeira igualdade consiste em premiar desigualmente os desiguais". Se bem que não tanto.
Rogério Antonio Lagoeiro de Magalhães. Economista e pesquisador vinculado da COPPE/UFRJ - O GLOBO, 21/06/2011
Interesses pessoais e corporativos alterando leis, desrespeito ao teto previsto, disparidades entre o maior e o menor salário, discriminação entre cargos assemelhados e discrepâncias no pagamento de salários, subsídios e vantagens discriminam os servidores públicos, afrontam princípios republicanos, estimulam desarmonia, criam divergências, alimentam conflitos e promovem privilégios a uma oligarquia no serviço público.
Ministro Carlos Ayres Britto, presidente do STF ao cassar uma liminar que impedia a publicação de forma individualizada das remunerações.
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