ZERO HORA 08 de julho de 2012 | N° 17124
Divulgação de salários em debate
Em resposta à tendência de publicação de nomes e contracheques de servidores, sindicalistas pedem respeito à privacidade - CARLOS ROLLSING
De um lado, defensores do direito do contribuinte de saber como são remunerados os servidores públicos e, de outro, os próprios servidores que não concordam em sofrer devassa de seus contracheques pela internet.
Em um debate inédito no país, diferentes interpretações põem em xeque a Lei de Acesso à Informação – pelo menos no que diz respeito à publicação de nomes e salários do funcionalismo.
Mesmo com a sanção da Lei de Acesso à Informação, acrescida da regulamentação feita pela presidente Dilma Rousseff e da validação do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a divulgação dos nomes e salários dos servidores públicos abriu um debate sem precedentes no país.
Embora o decreto de Dilma tenha determinado explicitamente a publicação das informações, uma série de governantes resistem à ideia, muitos deles pressionados por sindicatos de funcionários que estão obtendo algumas vitórias em tribunais de primeira instância para suspender os efeitos da lei.
No cerne do debate, a linha tênue entre público e privado. O interesse coletivo e o pessoal. A moralidade e o descalabro. Os princípios constitucionais da publicidade e da privacidade, que entram em rota de colisão.
Defensores da plena divulgação de listas abertas com a remuneração bruta e o nome dos servidores, a exemplo do que fez o STF, partem do princípio de que os salários do funcionalismo são pagos com o dinheiro arrecadado com a cobrança de impostos. Consequentemente, entendem que o cidadão tem o direito de conhecer a plena aplicação das verbas. Além de destacar que mecanismos parecidos já existem em mais de 90 países, defendem que a opção pelo serviço público acarreta consequências nem sempre agradáveis.
– Quem atua na área pública não tem o mesmo grau de privacidade em relação a outros cidadãos. Essencialmente porque quem paga o salário desse servidor é o cidadão – afirma Cláudio Abramo, presidente da ONG Transparência Brasil, de São Paulo.
Também constam na lista de argumentos o fato de os gastos com folha de pagamento do funcionalismo representarem 14% do PIB do país, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
– Não é uma curiosidade sobre quanto ganha um servidor público. Uma das vantagens da publicação é a comparação entre poderes, que vai permitir a identificação de distorções como a dos ascensoristas do Congresso que ganham mais do que um médico ou professor – avalia Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, de Brasília.
Na trincheira oposta, trabalhadores do setor público protestam contra a invasão da sua intimidade. Alegam vulnerabilidade diante de criminosos, fomento de problemas familiares e desrespeito ao direito da privacidade.
Advogado condena exposição
Não apenas sindicalistas, mas também especialistas em Direito constitucional veem problemas na publicação de listas com salários e nomes.
– Em relação ao agente político, o presidente, o governador me parece natural a publicação. Mas, no caso daquele trabalhador que faz parte da carreira, não há razoabilidade na publicação – diz o advogado Antônio Augusto Mayer dos Santos.
As ações de primeira instância que determinaram a retirada das informações salariais de alguns portais de transparência são exaltadas por sindicatos como comprovação da existência de “irregularidades” no ato. Embora em Brasília a liminar já tenha sido cassada, em Porto Alegre vigora ainda uma decisão contra a prefeitura.
ENTREVISTA
“Dizer que o servidor fica vulnerável não basta”
Elival da Silva Ramos - Professor da USP
Professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), Elival da Silva Ramos diz que a publicação nominal da remuneração de servidores cumpre o princípio da publicidade. Ele acredita que a perda de parte da privacidade é inerente à atividade no setor público.
Zero Hora – É legal a publicação de nomes e salários de servidores?
Elival da Silva Ramos – Do ponto de vista constitucional, tem um conflito aparente entre dois princípios. De um lado, a questão da privacidade. De outro, a publicidade. No caso concreto, os servidores são remunerados com o dinheiro dos impostos. Por isso, os cidadãos têm o direito de saber.
ZH – Se existem dois princípios constitucionais em conflito, qual o critério para fazer um prevalecer?
Elival – A Constituição é um guia de valores gerais. Ela é abrangente, não pode ser muito específica. A Lei de Acesso à Informação veio para dar estrutura efetiva ao princípio do direito à informação. Então, resolvemos os conflitos pela lógica da razoabilidade. Dizer que o servidor fica vulnerável com a publicação das remunerações não basta. Se pode ficar vulnerável de várias formas. Eu não conheço nenhum caso de crime planejado pelo Diário Oficial. Os criminosos agem pelo carro que você usa, pela casa onde mora, pelo relógio que carrega. O que há por trás dos protestos é um grande corporativismo. Não querem expor porque há muitos pagamentos discutíveis e irregulares.
ZH – Qual o modelo mais adequado para as publicações?
Elival – É preciso esclarecer as gratificações, as vantagens pessoais e outros benefícios. Isso resulta em diferenças individuais. A composição das remunerações deve ser publicada individualmente. Caso contrário, não há controle efetivo. Apenas pondero que descontos de ordem pessoal, como pensões alimentícias, não devem ser divulgados. Isso é de natureza pessoal.
ZH – O servidor público sofre ônus por exercer essa função?
Elival – Sem dúvida. Quem está na atividade pública faz opção por algo diferente. Mas isso também ocorre, por exemplo, com artistas e celebridades. Eles acabam perdendo parte da privacidade porque a vida deles passa a ser parte de interesse do público. O servidor público serve ao público, que tem todo o direito de conhecer a aplicação dos impostos.
ZH – Críticos dizem que a publicação das remunerações não está expressa na lei.
Elival – É uma interpretação equivocada. Imagina se a lei for listar tudo aquilo que precisa ser publicado. A lei não precisa esgotar todas as hipóteses. E o decreto presidencial que regulamentou fez a expressa previsão de publicação das remunerações.
ENTREVISTA
“O servidor público faz muito pela sociedade”
Abel Ferreira - Presidente da AfisvecP
Para o presidente da Associação dos Fiscais de Tributos do Rio Grande do Sul (Afisvec), Abel Ferreira, a divulgação dos nomes e das remunerações dos servidores é uma estratégia para desviar o foco do mensalão. Ele caracteriza as iniciativas como lesivas à privacidade.
Zero Hora – Como o senhor avalia a publicação de nomes e salários dos servidores?
Abel Ferreira – Já temos uma lei que trata do acesso à informação. Se a pessoa pedir formalmente a informação, ela poderá receber. Mas, se fizer mau uso, deverá ser punida.
ZH – É legal a publicação?
Abel – Eu vejo que há flagrante inconstitucionalidade. Existe o princípio da privacidade. É um princípio constitucional que acaba sendo afetado. A lei (de Acesso à Informação) e o decreto (da presidente Dilma Rousseff para regulamentar a lei) também podem ser inconstitucionais. Tanto é verdade que estão pipocando no Brasil ações proibindo a divulgação dos dados.
ZH – O senhor não concorda que a publicidade das folhas é importante para corrigir distorções?
Abel – Estão bombardeando os jornais com essas informações para desviar o foco do mensalão. O caso está prescrevendo e não se vê mais nada sobre isso. São pessoas que roubaram o Brasil. É isso que nos preocupa. E não os servidores que ganham salários estabelecidos por lei, dentro do teto.
ZH – E os salários acima do teto no serviço público?
Abel – O Executivo respeita. Se tiver, é um ou dois que recebem acima do teto porque obtiveram decisões judiciais pelo direito adquirido.
ZH – Que tipo de problema a divulgação pode trazer?
Abel – Um servidor que ganha R$ 24 mil por mês poderá ser assaltado, a ex-mulher pode pedir aumento da pensão.
ZH – Sem publicação, como coibir os vencimentos acima do teto?
Abel– Se for verificado algum abuso, entre administrativamente e peça a correção. Já somos fiscalizados pelo Tribunal de Contas, Ministério Público e outros órgãos de controle.
ZH – Então a situação dos salários está sob controle?
Abel – Os órgãos estão coibindo. Nos grandes casos de corrupção, os funcionários públicos não estão envolvidos. São agregados que entram lá e fazem a safadeza. O servidor público faz muito pela sociedade. Ele não é um vigarista.
ZH – Posturas como a sua estão não são corporativistas.
Abel – Não vejo dessa forma. Mas, se o meu grupo achar que não é correto, vou entrar com ação judicial.
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